sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Exercício 26 - 2007



O porta-retrato

Breno foi pai e mãe ao mesmo tempo. Quando Paulinho tinha 3 anos, Anita saiu de casa. Queria viver a vida e seus sonhos eram incompatíveis com qualquer tipo de rotina, principalmente se esta incluísse casa e filhos. O que para Breno foi ótimo. A idéia de ser pai-solteiro jamais o assustou. Mesmo sendo policial, fazia parte da polícia técnica, era excelente desenhista e sua especialidade era produzir retratos falados e projetar o desenvolvimento das imagens de crianças desaparecidas. A partir de fotos da criança e seus pais, projetava como seria seu rosto quando ela tivesse mais velha.

Foi numa sexta-feira, logo após ter chegado no departamento, que Breno recebeu a notícia da morte de Paulinho. Choque na tomada do quarto. Fatalidade. A babá tentou livrá-lo e acabou eletrocutada também. Inexperiência. Mais fatalidade. Breno havia colocado proteções em todas as tomadas mas a babá havia tirado na última vez em que levou o rádio para o quarto do menino.

Breno enterrou Paulo no cemitério da Quarta Parada, na zona leste de São Paulo. Não avisou ninguém da família, nem Anita ficou sabendo.

Breno seguiu a vida no mesmo ritmo de antes. Nunca mais pôs os pés em casa, exceto no dia do enterro, quando foi retirar algumas roupas suas e documentos.

Mudou-se para uma pensão em Santa Cecília, bem pertinho da igreja, na qual jamais entrou.

Breno nunca mais se relacionou com outra mulher. Pra ser sincero, não se relacionava com mais ninguém. Sua rotina era o trabalho e o quarto da pensão. No trabalho quase não falava com ninguém, prática facilitada pela sua atividade altamente técnica e reservada. Praticamente só conversava com vítimas de crimes para reconhecer criminosos, mas que mesmo assim era um trabalho de mostrar álbuns e formatos de rostos e traços.

Seu quarto na pensão só tinha uma cama e um criado mudo, onde pôs um porta-retrato com uma foto em “close” de Paulinho.

Todo dia em que Paulinho completaria mais um aniversário, Breno substituía a foto por outra, atualizada por ele em programa de computador. Assim ele podia ver como estaria Paulo ano após ano.

E assim o fez por muitos anos.

Um dia, quando atualizou a imagem de Paulinho quando ele completaria 34 anos, Breno por fim reconheceu-se. Parecia que não era mais o Paulo, mas a imagem de si próprio.

Nesse dia, antes de ir para casa, passou pela confeitaria que ficava na esquina e comprou um pedaço de torta de maçã, uma velinha.

Ao chegar ao seu quarto, substituiu a foto atualizada no porta-retratos, cantou para si mesmo em pensamento o “parabéns a você”, apagou a vela, comeu o bolo e foi deitar-se.

Seus colegas da Polícia encontraram-no morto em sua cama no dia seguinte. Já não tinha mais motivos para levantar-se.

Mar de Aventhor - 2004

Não torne irrelevantes coisas irreveláveis. E se a gente não tiver alma, só desejos inconfessáveis? 

O barco de Ulisses - 2003

Um novo emprego para a Janaína

Janaína poderia ser chamada de Doutora. Até mesmo porque efetivamente e legalmente o era. Fez doutorado em História na Universidade Nova de Lisboa,  defendendo uma tese sobre as influências do messianismo português nos movimentos populares brasileiros do século XVIII.

Diferente dos doutores advogados, Janaína era e não era. Só seus amigos muito íntimos sabiam de seus títulos acadêmicos. Todos conheciam a Jana pelo seu amor aos estudos e pela simpatia. Em simpatia a moça já era livre docente havia zilhões de anos. Títulos são degraus em direção ao pêlo do ovo e não medalhas pra se ostentar no peito.

Houve um tempo em que a Jana teve que parar tudo pra conseguir dinheiro. A grana em casa tava curta. Pais com problemas de saúde, coisas do gênero. Jana foi à luta. Conseguiu um trabalho como gerente de relacionamento em um dos maiores bancos do país (indicação de um ex-namorado dela).

Como que num rito de passagem para esse novo mundo, um dia antes de começar no novo emprego Jana mandou tatuar em sua nuca um código de barras, desses que a gente vê estampados nas mercadorias dos mais variados tipos e preços. O tatuador estranhou, mas gosto é gosto.

Jana desapareceu de vista por uns dois anos. Pelo menos dos lugares que costumava encontrá-la, como bibliotecas, livrarias e dos cinemas (sua diversão predileta nos sábados à noite). Saiu do Orkut, do MSN. O endereço eletrônico continuava ativo, pois, mesmo sem respostas dela, as mensagens não retornavam com avisos de erro no envio.

No domingo após o último Natal, lá pelas onze da noite, recebi um e-mail dela que dizia o seguinte:

“... não reconheço mais os ruídos do meu computador, do assoalho da minha casa, até a Madeleine Peyroux parece que mudou o tom da sua voz.  Não reconheço nem mesmo o caminho para a minha casa, as pessoas na praia, as curvas da estrada Fróes. As estradas me parecem cobertas de barro, lugares por onde não passei. Até mesmo os porta-retratos me parecem expostos com fotografias de artistas esquecidos, jogos de memória, implantes. Um “blade runner“ se aproximou de mim, um andróide dentro de mim está sorrindo. Não sei mais escrever. Minhas mãos agora só recebem ordens do cérebro. Penso e existo, raciocino e coordeno minha auto-escravização motora. Se ao menos pudesse cair alguma lágrima por debaixo de minhas unhas...

Confesso que fiquei preocupado com a Jana. Doía vê-la nesse estado, mas não tive coragem de telefonar pra ela, muito menos responder aquele e-mail que ela me enviou.

Só sei que em janeiro me disseram que ela estava de malas prontas pra voltar pra Portugal e estavam organizando uma despedida para ela em um bar em Charitas. No bota-fora, num breve momento enquanto ela se abaixava para pegar um guardanapo que tinha caído no chão, vi sua tatuagem escondida por trás do cabelo (que agora estava mais curto). Acho que ela mandou retocar a tatuagem. As linhas do código de barras agora estavam ligadas por um traço horizontal e irregular que parecia representar um arame farpado. E na ponta superior das linhas mandou tatuar botões-de-rosa vermelhos. Tive a impressão de que eles estavam se abrindo.

quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Beira do lago - 2004

Aconteceu na Penitenciária do Ahú

Não tinha família fora, nem casa, nem emprego, nem herança. Foi condenado por assassinato. Matou por vingança o moleque de 14 anos que tirou as vidas de sua mulher e de sua filha.

Na cadeia era o mais quieto. Não conhecia ninguém envolvido com esquadrões da morte, jogos e drogas antes de entrar lá. Também não quis conhecer no durante para não ter compromissos no depois. Não tinha ninguém fora e ninguém dentro dali.

Dividia a cela com outros três sujeitos. Todos condenados por estupro. Mas ninguém chegava perto dele. Com seus 140 quilos suados e com um fedor que lhe era peculiar, ninguém estava a fim de chamego.

O tempo passava devagar e ele sabia muito bem disso. Esse castigo cronológico que só a contumácia dos minutos é capaz de causar só servia para ser transformado em cada vez mais e mais ansiedade. E mau cheiro exalado no ar também.

Um belo dia, relembrando sua filha ainda bebê, veio em sua mente como seu também finado sogro a chamava: maquininha de fazer cocô. Máquina de fazer cocô. Era nisso que ele estava se transformando. Dormia, acordava, sentava quieto no canto da sala, comia, cagava, dormia. Ele se sentia um merda e sua vida era efetivamente o ciclo da merda. Parece que, quando felizes, somos atores e personagens dentro do ciclo da vida. Quando desistimos dela, não acreditamos mais no homem e nas intenções humanas; assumimos efetivamente o ciclo da merda. O fisiológico passa a ser epifânico, escatológico.

Só sei que ele foi definhando. Não falava com mais ninguém. Ficava deitado diuturnamente em posição fetal. Não se alimentava mais.

Passados três dias sem comer nada, a psicóloga do presídio foi chamada na cela e levou-o para uma enfermaria. Até brincou com o médico dizendo que ele parecia um bebê, uma maquininha de fazer cocô. Mas ela estava equivocada (errada jamais, até porque psicólogos não erram). Uma máquina necessariamente precisa de entradas: “inputs”, alimentos. E ele não se alimentava mais.

Deitado enrolado daquele jeito, ele não havia retornado à posição fetal, mas havia se tornado, e de maneira bem convincente, em uma merda, parecida com essas que são vendidas em lojas de artigos para mágicas e trapaças, porém com um cheiro bem, bem mais forte. O que ainda era célula viva, apodreceria, morreria, tornar-se-ia uma completa merda infestada de bicho no prazo máximo de uma semana.

Arte sobre tela rejeitada - 2003



Em meio a cruzes e quartos crescentes

(medos do homem)

e fórmulas

(maquinomem)

d’existimos.