sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Um novo emprego para a Janaína

Janaína poderia ser chamada de Doutora. Até mesmo porque efetivamente e legalmente o era. Fez doutorado em História na Universidade Nova de Lisboa,  defendendo uma tese sobre as influências do messianismo português nos movimentos populares brasileiros do século XVIII.

Diferente dos doutores advogados, Janaína era e não era. Só seus amigos muito íntimos sabiam de seus títulos acadêmicos. Todos conheciam a Jana pelo seu amor aos estudos e pela simpatia. Em simpatia a moça já era livre docente havia zilhões de anos. Títulos são degraus em direção ao pêlo do ovo e não medalhas pra se ostentar no peito.

Houve um tempo em que a Jana teve que parar tudo pra conseguir dinheiro. A grana em casa tava curta. Pais com problemas de saúde, coisas do gênero. Jana foi à luta. Conseguiu um trabalho como gerente de relacionamento em um dos maiores bancos do país (indicação de um ex-namorado dela).

Como que num rito de passagem para esse novo mundo, um dia antes de começar no novo emprego Jana mandou tatuar em sua nuca um código de barras, desses que a gente vê estampados nas mercadorias dos mais variados tipos e preços. O tatuador estranhou, mas gosto é gosto.

Jana desapareceu de vista por uns dois anos. Pelo menos dos lugares que costumava encontrá-la, como bibliotecas, livrarias e dos cinemas (sua diversão predileta nos sábados à noite). Saiu do Orkut, do MSN. O endereço eletrônico continuava ativo, pois, mesmo sem respostas dela, as mensagens não retornavam com avisos de erro no envio.

No domingo após o último Natal, lá pelas onze da noite, recebi um e-mail dela que dizia o seguinte:

“... não reconheço mais os ruídos do meu computador, do assoalho da minha casa, até a Madeleine Peyroux parece que mudou o tom da sua voz.  Não reconheço nem mesmo o caminho para a minha casa, as pessoas na praia, as curvas da estrada Fróes. As estradas me parecem cobertas de barro, lugares por onde não passei. Até mesmo os porta-retratos me parecem expostos com fotografias de artistas esquecidos, jogos de memória, implantes. Um “blade runner“ se aproximou de mim, um andróide dentro de mim está sorrindo. Não sei mais escrever. Minhas mãos agora só recebem ordens do cérebro. Penso e existo, raciocino e coordeno minha auto-escravização motora. Se ao menos pudesse cair alguma lágrima por debaixo de minhas unhas...

Confesso que fiquei preocupado com a Jana. Doía vê-la nesse estado, mas não tive coragem de telefonar pra ela, muito menos responder aquele e-mail que ela me enviou.

Só sei que em janeiro me disseram que ela estava de malas prontas pra voltar pra Portugal e estavam organizando uma despedida para ela em um bar em Charitas. No bota-fora, num breve momento enquanto ela se abaixava para pegar um guardanapo que tinha caído no chão, vi sua tatuagem escondida por trás do cabelo (que agora estava mais curto). Acho que ela mandou retocar a tatuagem. As linhas do código de barras agora estavam ligadas por um traço horizontal e irregular que parecia representar um arame farpado. E na ponta superior das linhas mandou tatuar botões-de-rosa vermelhos. Tive a impressão de que eles estavam se abrindo.

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