quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Aconteceu na Penitenciária do Ahú

Não tinha família fora, nem casa, nem emprego, nem herança. Foi condenado por assassinato. Matou por vingança o moleque de 14 anos que tirou as vidas de sua mulher e de sua filha.

Na cadeia era o mais quieto. Não conhecia ninguém envolvido com esquadrões da morte, jogos e drogas antes de entrar lá. Também não quis conhecer no durante para não ter compromissos no depois. Não tinha ninguém fora e ninguém dentro dali.

Dividia a cela com outros três sujeitos. Todos condenados por estupro. Mas ninguém chegava perto dele. Com seus 140 quilos suados e com um fedor que lhe era peculiar, ninguém estava a fim de chamego.

O tempo passava devagar e ele sabia muito bem disso. Esse castigo cronológico que só a contumácia dos minutos é capaz de causar só servia para ser transformado em cada vez mais e mais ansiedade. E mau cheiro exalado no ar também.

Um belo dia, relembrando sua filha ainda bebê, veio em sua mente como seu também finado sogro a chamava: maquininha de fazer cocô. Máquina de fazer cocô. Era nisso que ele estava se transformando. Dormia, acordava, sentava quieto no canto da sala, comia, cagava, dormia. Ele se sentia um merda e sua vida era efetivamente o ciclo da merda. Parece que, quando felizes, somos atores e personagens dentro do ciclo da vida. Quando desistimos dela, não acreditamos mais no homem e nas intenções humanas; assumimos efetivamente o ciclo da merda. O fisiológico passa a ser epifânico, escatológico.

Só sei que ele foi definhando. Não falava com mais ninguém. Ficava deitado diuturnamente em posição fetal. Não se alimentava mais.

Passados três dias sem comer nada, a psicóloga do presídio foi chamada na cela e levou-o para uma enfermaria. Até brincou com o médico dizendo que ele parecia um bebê, uma maquininha de fazer cocô. Mas ela estava equivocada (errada jamais, até porque psicólogos não erram). Uma máquina necessariamente precisa de entradas: “inputs”, alimentos. E ele não se alimentava mais.

Deitado enrolado daquele jeito, ele não havia retornado à posição fetal, mas havia se tornado, e de maneira bem convincente, em uma merda, parecida com essas que são vendidas em lojas de artigos para mágicas e trapaças, porém com um cheiro bem, bem mais forte. O que ainda era célula viva, apodreceria, morreria, tornar-se-ia uma completa merda infestada de bicho no prazo máximo de uma semana.

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