segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Uma flor pra Laurinha (2003)

Doutor Ítalo e os espelhos

Seu Ítalo sabia que estava prestes a morrer. Antes de seguir para o hospital onde o médico faria uma última tentativa de postergar os efeitos da metástase já adiantada, foi ao seu barbeiro aprumar o bigode, endireitar as sobrancelhas, aparar o cabelo. 
Ele freqüentava a barbearia de Seu Adamastor desde a juventude, muito antes de entrar na Faculdade de Direito de Ponta Grossa.
Seu pai costumava dizer-lhe que, para compensar seu claudicante caráter, era necessário ao menos manter uma aparência firme, decidida, porém agradável aos olhos, principalmente aos que refletiam almas femininas. Não gaste dinheiro com livros, dizia. Poupe-os para gastar com o barbeiro, o alfaiate e o ourives. Gaste-o também adquirindo pequenos mimos, que presenteados às pessoas certas, poderão ser mais úteis do que conhecer palavra por palavra, todas as obras de Giordano Bruno e os códigos de direito civil, penal e tributário, disponíveis na biblioteca da Faculdade. Dos clássicos, basta conhecer apenas uma única frase de Maquiavel. Aquela que diz que não é necessário ser. Basta apenas parecer ser.
A Barbearia do Adamastor estivera fechada por três dias. Os ventos da modernidade motivaram-no a mudar a aparência do salão de corte. Basicamente a tão esperada modernização, no caso da barbearia, se resumia na substituição do tecido dos assentos (que foram recobertos em couro de um tom vermelho escuro); mudanças na iluminação do ambiente (retirada de um velho lustre) e colocação de enormes espelhos nas paredes. Estes fascinaram Seu Ítalo. Não só pelo tamanho, mas por sua colocação  nas paredes situadas à frente e às costas dos clientes, de tal modo que podiam ver suas imagens refletidas infinitamente pelo jogo de espelhos.
Aquela perspectiva deixou-o encantado, enlevado até. A multiplicação de sua imagem dava-lhe uma sensação indescritível de infinitude. Não via apenas sua imagem multiplicada, mas sua essência. Sabia que morreria e não havia nada de significativo a deixar para trás. Apenas filhos, uma esposa, algumas propriedades herdadas que ainda não tivera tempo de usufruir. Algumas amantes furtivas que habitavam os arredores dessas propriedades, notadamente as mais distantes. Nada mais que isto.
Mas a magia da repetição de sua imagem valera-lhe a vida.
Duas semanas depois, Seu Ítalo estava à morte. Seu último desejo foi ser levado novamente à barbearia. Os médicos tentaram argumentar dos riscos nos quais incorria e do fato de que poderiam reproduzir o mesmo efeito dos espelhos no quarto do Hospital. Não conseguiram convencê-lo.
Seu Ítalo morreu dentro da ambulância, dois quarteirões antes de chegar na barbearia de Seu Adamastor.