quarta-feira, 12 de novembro de 2008

O professor volta pra casa

Lembro que ela me chamou de pai enquanto empurrava a cadeira de rodas na saída do hospital. Colocou-me num carro e me trouxe para esse apartamento. Disse que eu havia sofrido uma espécie de perda súbita de memória.

Ester (é esse o nome da mulher que me trouxe pra esse apartamento) me deu um álbum com muitas fotos. Eu me reconheço em várias delas, mas não lembro o nome de quem está comigo, nem de quando foram tiradas.

Ela, a mulher que me trouxe (acho que é minha filha), disse que eu era professor aposentado de Filosofia. Apontou pra mim uma escrivaninha. Levando-me até ela, me mostrou uma estante cheia de livros. Leio os sobrenomes Nietzsche, Deleuze, Harvey, Kant, Baudrillard, Sartre, Hegel, Luckaks, Guattari nas lombadas, mas não lembro se já os li e menos ainda o que neles está escrito.

Hoje está quente. Ela diz que já são oito da noite. Me leva para uma grande varanda que existe no apartamento. Ela me traz um copo de suco amarelo. Me disse que era de manga, meu predileto, segundo ela. Coloca um lençol sobre minhas pernas (ainda não saí da cadeira de rodas). O céu está cheio de estrelas.

 Ester passa a mão pelos meus cabelos, me alisa as sobrancelhas, me trata com carinho.

Nada mais me lembro acerca de todos aqueles livros e que, segundo Ester,  até dei aulas sobre o que neles está contido.

Não sei bem quem sou, não faço a mínima idéia do que tenho que fazer. Só duas coisas me parecem certas: as estrelas que eu vi no céu e as mãos de Ester alisando os meus cabelos.

3 comentários:

Anônimo disse...

Ante tão drástica realidade, o professor pelo menos não perdeu a sensibilidade de "reconhecer estrelas" e tem o afago de uma mão mais que amiga. São duas coisas essenciais para começar a reviver.
Belo texto Juliano.

Você citou Montalvão no comentário do post anterior. Olha, sempre encontro com ele. Apenas está mais velho, como todos nós, mas continua o mesmo "guri sonhador" de sempre.

Há braços!

Anônimo disse...

Esse texto é uma brincadeira sobre a frase do Kant, que dizia que só tinha certeza de duas coisas: do céu estrelado sobre ele e da lei moral dentro dele... Quando todas as idéias se forem, ainda restará Kant. (rsrs)

Baita abraço!

Anônimo disse...

No fim, o nosso silencio abrirá os campos para os estúpidos.
Ignorantes sobre a maior das dores, com sorrisos tardios quererão aquecer os nossos céus!Sem a vontade de enfrentar o bom combate, nos trairemos...
De que valeu a luta? De que valeu o amor? De que valeu o esforço? E a loucura? A fé meu Deus???
Apenas aguardaremos...com uma xícara de chá nas mãos e frio nas pernas!